Por: Nathalia Lavigne

Em "The Natural History of Rape", ou a história natural do estupro, a artista Ariella Aïsha Azoulay faz um inventário de uma documentação que não existe sobre a onda de estupros em massa de mulheres ocorridos em Berlim em 1945, episódio pouco falado entre os traumas do pós-Guerra na Alemanha.

É estimado que foram até 2 milhões de casos nos primeiros meses depois do fim do conflito. Muitas foram estupradas diversas vezes tanto por soldados do Exército Vermelho quanto das tropas aliadas, e os ataques eram facilitados pelos prédios em ruínas.

A forma como escolhe contar essa história é também silenciosa. Apresentando um extenso material de arquivo sobre o período numa mesa, a artista enumera em quantas páginas o assunto é abordado -161 entre as 9.558 de livros consultados.

Em alguns deles, ela também insere quadrados negros onde poderia haver imagens documentando os episódios e legendas sensacionalistas, sugerindo uma cena similar às fotos de guerra que conhecemos bem. "Um rastro de sangue leva a uma igreja próxima, ao lado da qual o corpo de uma jovem pode ser visto deitado na rua," escreve.

A instalação de Azoulay traduz em vários sentidos o pensamento desta 12ª Bienal de Berlim, que pode ser resumido como um olhar crítico para os arquivos e a perpetuação de práticas coloniais que continuam presentes, mesmo sem serem vistas ou nomeadas.

Em seu livro "Potential History: Unlearning Imperialism", de 2019, a artista e pesquisadora escreve longamente sobre reparação, tema central também na obra do artista francês Kader Attia, organizador desta edição junto de Ana Teixeira Pinto, ?o Tuong Linh, Marie Helene Pereira, Noam Segal e Rasha Salti.

Dez anos depois de ter se destacado na 13ª edição da Documenta, em Kassel, na Alemanha, com a instalação "The Repair from Occident to Extra-Occidental Cultures", algo como a reparação das culturas do ocidente em relação às extraocidentais, Attia parte desse mesmo conceito e o define como força motriz da atual Bienal de Berlim.

Mesmo que o mundo já seja outro em relação a dez anos atrás, a ideia da reparação ainda parece responder bem às novas questões reforçadas na última década. Entre elas a "governança algorítmica do capitalismo 24 horas por dia", como escreve no catálogo da mostra, destacando a "agência criativa" da arte como um dos caminhos para reparar e reinterpretar o presente, celebrado no nome da mostra, "Still Present!".

O problema é que a reiteração do conceito, reverberando em diversos trabalhos ao longo dos seis espaços expositivos, acaba tendo um efeito contrário de enfraquecimento -uma obra como a de Azoulay, que parece central para o pensamento da exposição, tem uma apresentação menos acessível pelo excesso de texto, além das intervenções sutis nos livros que demandam mais tempo para serem notadas.

O mesmo acontece com os fluxogramas feitos à mão por Moses März em "Community", com informações excessivas apontando as conexões coloniais na cidade de Berlim e movimentos de resistências, propondo outras afinidades ideológicas "fora de um paradigma euroliberal", como escreve.

Ou também em outras obras que tratam da violência dos arquivos com nomes promissores -como "Dream Your Museum", ou sonhe o seu museu, em que a indiana Khandakar Ohida parte de uma história pessoal sobre o tio que a vida toda acumulou todo tipo de objetos em casa para refletir sobre as distinções entre um arquivo e uma coleção doméstica e as influências de hierarquias sociopolíticas nesse processo, especialmente em lugares como a Índia. A despeito da ideia espetacular sugerida pelo nome -a aproximação entre o imaginário museológico com o dos sonhos-, o resultado é menos interessante do que promete.

A presença de Ariella Aïsha Azoulay tem também outro dado importante. Ao se identificar como judia palestina, ela é uma das vozes mais críticas ao Estado de Israel -tema sensível na Alemanha, mais ainda nesse momento, com casos de artistas e acadêmicos sofrendo retaliações acusados de antissemitismo. Nesse sentido, a participação de diversos nomes palestinos é também uma forma de reparação, nesse caso propositalmente silenciosa.

Um dos trabalhos mais fortes da mostra é a instalação da dupla Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme, palestinos radicados em Nova York e com uma exposição no MoMa, o Museu de Arte Moderna, até final de junho.

Usando imagens gravadas por uma câmera de vigilância militar israelense, "Oh Shining Star Testify", obra desenvolvida de 2019 a 2022, conta a história de um menino de 14 anos morto a tiros depois de cruzar um muro de separação em território palestino para colher uma planta comestível tradicional na culinária local. Com projeções de vídeo e de som em multicanais e painéis de madeira atravessando a sala, a obra cria um ambiente imersivo e fragmentado, traduzindo bem a experiência de deslocamento e migrações forçadas que costumam tratar.

Um tema semelhante é tratado pelo artista jordaniano Lawrence Abu Hamdan também no espaço do museu Hamburger Bahhof, onde está o melhor conjunto de trabalhos. Em "Air Conditioning", deste ano, o que à primeira vista parecem inofensivas paisagens aéreas de um céu carregado revela detalhes invisíveis da vigilância sonora de aviões militares israelenses sobre o Líbano mapeados ao longo de 15 anos.

Com um processo de trabalho que nasce de uma investigação forense -ao estilo do coletivo Forensic Architecture, também presente na mostra- Abu Hamdan criou as imagens num software a partir de um conjunto de dados das Nações Unidas apontando as violações de guerra. A instalação é acompanhada de um site, Airpressure.info, que detalha a pesquisa.

Chama a atenção, entretanto, a quase ausência de nomes da América Latina nesta bienal -talvez pelo fato de a última edição, organizada por Lisette Lagnado, María Berríos, Renata Cervetto e Agustín Pérez Rubio, ter dedicado bastante espaço a artistas do continente. Ainda assim, se a intenção é abordar a perpetuação do colonialismo atravessando o presente por todos os lados, faz falta um olhar menos centrado nas relações entre a Europa e o continente africano, que predomina na mostra.

Por: Igor Siqueira

Todos enfileirados, já no túnel, prestes a entrar em campo para uma partida importante da Copa do Mundo. Mas a "natureza" chama. Vem o aperto. O que fazer? Se o jogador em questão estiver no Estádio 974, em Doha, no Qatar, basta olhar para o lado direito. Na porta de um container verde estará a placa que é uma boa notícia para essa situação: "Last minute toilet". O banheiro para o último minuto.

Ele está ali para evitar que os jogadores precisem voltar ao vestiário, caso tenham vontade de ir ao banheiro. Em visita na semana passada, a reportagem viu que a distância entre a porta de acesso ao gramado e os vestiários não é tão longa assim. No entanto, para quem está apertado ou precisa começar um jogo no horário, cada instante conta.

O fato de o banheiro ser um container passa longe de um improviso. Trata-se do conceito arquitetônico inovador, encomendado pelos organizadores da Copa do Qatar ao escritório Fenwick Iribarren Architects. O plano era evitar que o estádio para 40 mil pessoas fosse mais um elefante branco.

A estrutura da qual 974 containers fazem parte -o nome vem daí e também do código telefônico do Qatar- será completamente desfeita após a Copa. Logo, o banheiro também. A ideia original era fazer algo inspirado em Lego. Posteriormente, veio a proposta de usar os containers.

O "pit stop" no banheiro de última hora poderá ocorrer em um jogo do Brasil, por exemplo. A seleção de Tite fará no Estádio 974 a segunda partida pela fase de grupos, contra a Suíça, em 28 de novembro. O técnico da seleção esteve no estádio em abril e conheceu o ambiente.

Ele queria ver o posicionamento dos bancos de reserva, sentir a atmosfera. Ao todo, serão sete jogos da Copa do Mundo no 974, no estádio instalado à beira do mar e com vista privilegiada para a área de prédios mais altos de Doha.

Um banheiro tão próximo do campo não faz parte do padrão Fifa. Tanto que esse desenho não se replica no Lusail, por exemplo, palco da final da Copa e onde o Brasil fará os outros dois jogos da primeira fase -a estreia diante da Sérvia, em 24 de novembro, e o confronto com Camarões, no dia 2 de dezembro. O formato é incomum, inclusive, em estádios usados na Copa do Mundo do Brasil. O Maracanã, por exemplo, não tem.

O 974 foi inaugurado em novembro de 2021, por ocasião da Copa Árabe. Pela natureza transitória e a peculiaridade do projeto, é o único dos oito estádios escalados para o Mundial que não terá ar-condicionado para campo e arquibancadas -os assentos, inclusive, são menos requintados do que os de outras praças qataris. A previsão é que a Copa de novembro a dezembro aconteça com temperaturas amenas, ao contrário dos jogos recentes da repescagem, que foram no verão.

O uso de containers na estrutura do Estádio 974 se estende até as áreas mais nobres do local, como a área VVIP -sim, com dois vês. No setor com capacidade para até 300 pessoas, alguns dirigentes, como o presidente da Fifa, têm um lounge exclusivo. Por fora, um container. Por dentro, o ambiente de uma sala, com sofás, e um banheiro exclusivo -para ser usado não só no "último minuto".

*O repórter viajou a convite do Supreme Committee for Delivery & Legacy

A Fifa anunciou as cidades e os estádios que receberão as partidas da Copa do Mundo de 2026. Das 23 arenas que se apresentaram como candidatas, 16 foram escolhidas para o torneio, cuja organização será dividida entre Estados Unidos, México e Canadá.

A decisão foi divulgada em evento realizado pela entidade que comanda o futebol mundial, em Nova York, na noite de quinta-feira (16). Está entre os campos vencedores da disputa aquele em que a seleção brasileira conquistou o tri mundial.

Em 1970, o Brasil levou a Copa pela terceira vez e ficou com a posse definitiva -ou quase isso- da taça Jules Rimet. O troféu foi obtido em uma vitória por 4 a 1 sobre a Itália, no estádio Azteca, na Cidade do México, novamente sede de um Mundial.

O Azteca será o primeiro estádio a receber duelos de três edições da competição. Em 1986, o torneio foi novamente realizado no México, e o palco da decisão se repetiu. Era a consagração de Maradona, que levou a Argentina ao título em triunfo por 3 a 2 sobre a Alemanha Ocidental.

Havia a expectativa que o campo em que o Brasil ganhou o tetra, em 1994 –vitória nos pênaltis sobre a Itália, após empate por 0 a 0– também voltasse a ter jogos da Copa. Mas o tradicional Rose Bowl, em Pasadena, nos arredores de Los Angeles, foi preterido pelo moderno SoFi Stadium, em Inglewood, outra cidade na grande LA.

Nos Estados Unidos, também receberão partidas Nova Jersey (MetLife Stadium), Dallas (AT&T Stadium), Santa Clara (Levi's Stadium), Miami (Hard Rock Stadium), Atlanta (Mercedes-Benz Stadium), Seattle (Lumen Field), Houston (NRG Stadium), Philadelphia (Lincoln Financial Field), Kansas (Arrowhead Stadium) e Boston (Gillette Stadium).

Já o México terá três arenas na competição. Além do Azteca, estarão no torneio o estádio Akron, em Zapopan, nas cercanias de Guadalajara, e o BBVA Bancomer, em Monterrey. O Canadá terá dois locais de disputa, o BMO Field, em Toronto, e o BC Place, em Vancouver.

"Vamos tentar organizar a Copa de modo que as seleções e os fãs não tenham que viajar muito. No momento oportuno, vamos decidir o local de abertura e o palco da final", afirmou o presidente da Fifa, Gianni Infantino.

"Em 2026, o futebol vai ser o esporte número um nesta parte do mundo."

A Copa do Mundo de 2026 será a primeira com 48 seleções -atualmente, são 32. Elas serão divididas em 16 grupos com três equipes cada um. As duas primeiras de cada chave avançarão ao mata-mata, na fase anterior às oitavas de final.

Aprovada em 2017, a ampliação foi uma cartada de Infantino, que viu crescerem sua influência e seu prestígio em países periféricos do futebol. Muitos dos que dificilmente teriam a oportunidade de jogar um Mundial passaram a ter chances bem maiores.

Haverá também mais dinheiro em movimento. As contas são periodicamente refeitas, mas a expectativa da entidade que rege o futebol é uma arrecadação de ao menos US$ 6,5 bilhões (R$ 33,2 bilhões, na cotação atual).

O torneio passará a ter um total de 80 partidas, 16 mais do que no formato atual. No certame de 2026, deverão ocorrer 60 confrontos em território norte-americano, dez no México e outros dez no Canadá. A final será nos Estados Unidos.

Por: Luís Curro

O ano: 2006. O mês: julho. O dia: 9. O país: Alemanha. A cidade: Berlim. O estádio: Olímpico. O evento: final da Copa do Mundo. Os rivais: Itália e França.

No segundo Mundial decidido nos pênaltis (o primeiro foi em 1994, Brasil x Itália, nos EUA), os italianos se sagraram pentacampeões ao superar os franceses por 5 a 3, depois de empate por 1 a 1 no tempo normal mais prorrogação.

Os personagens mais marcantes dessa decisão foram o craque francês Zinédine Zidane, capitão dos Bleus, e o zagueiro Marco Materazzi, da Squadra Azzurra.

Não só porque eles foram os responsáveis pelos gols de suas respectivas seleções, ambos no primeiro tempo -Zidane, de pênalti com cavadinha, e Materazzi, de cabeça após escanteio.

Mas porque eles protagonizaram a jogada mais lembrada da partida. A violenta cabeçada que o camisa 10 desferiu no peito do camisa 23 no início do segundo tempo da prorrogação. O motivo: uma provocação do beque italiano.

No relato do próprio Materazzi, depois de um desentendimento na grande área italiana que deixou o italiano com cara de poucos amigos, Zidane disse que depois do jogo lhe daria sua camisa, e ele retrucou: "Prefiro sua irmã".

A reação do francês, que tem uma irmã chamada Lila, foi imediata e intempestiva: a careca no tórax do italiano, que desabou.
O árbitro argentino Horacio Elizondo, ao saber da agressão por um auxiliar, mostrou o cartão vermelho a Zidane.

O lance ficou tão famoso que o escultor argelino Adel Abdessemed o imortalizou em uma estátua, cujo destino acabou sendo Doha, a capital do Qatar.

Colocada na orla da cidade, ela teve estadia curta por lá, apenas um mês.

Protestos constantes de muçulmanos -que a consideravam uma violação a dogmas religiosos, por incitar a idolatria, além de ser um estímulo à violência- fizeram com que as autoridades a retirassem e a guardassem.

Agora, entretanto, com a proximidade da Copa deste ano, que será em novembro e dezembro, a estátua de bronze de 5 metros de altura, chamada de Coup de Tête (Cabeçada), foi resgatada e será exibida para a população local e para os turistas.

Não perto do mar, a céu aberto, como nove anos atrás, mas em um local fechado, um museu com temática esportiva, a ser visitado somente por quem tiver interesse.

Nas palavras de Al-Mayassa bint Hamad bin Khalifa Al-Thani, irmã do emir do Qatar e responsável pela administração dos museus do país, "as sociedades evoluem", e hoje haverá entre seus compatriotas uma aceitação maior da obra de Abdessemed.

"As pessoas podem criticar algo no começo, mas depois entendem e se acostumam com isso", disse ela em entrevista a jornalistas. "Zidane é um grande amigo do Qatar e um modelo para o mundo árabe."

Al-Thani prosseguiu: "Estamos tentando ensinar e capacitar as pessoas por meio da arte, e ela representa fatos da vida. Com a escultura de Zidane, falaremos do estresse dos esportistas em grandes competições e sobre a importância de lidar com a saúde mental".

O museu 3-2-1, onde a Coup de Tête terá lugar de destaque em exposição a ser iniciada antes do início da Copa, fica localizado no Estádio Internacional Khalifa, um dos que receberão jogos do Mundial, incluindo a disputa pelo terceiro lugar.

Por: Giuliana Miranda

Após 226 anos do início das obras, a ala poente do Palácio da Ajuda, última residência dos reis de Portugal, foi aberta ao público com o novíssimo Museu do Tesouro Real. A instalação abriga uma coleção com mais de mil peças, que incluem joias raras e valiosas da coroa portuguesa, além de moedas, itens de ourivesaria religiosa, prataria artística -e grande quantidade de ouro e diamantes do Brasil.

Este é o nome, inclusive, de uma das 11 áreas temáticas da exposição. Um painel destaca a abundância das jazidas de Minas Gerais e seus "diamantes em enorme e inédita quantidade", que proporcionaram uma mudança de paradigma na joalheria portuguesa, "que passa a ser definida não pelos metais preciosos, mas sim pelas pedrarias". Não por acaso, das 22 mil pedras da exposição, 18 mil são diamantes.

O texto da seção brasileira menciona que a corrida do ouro trouxe exploradores e aventureiros à região, mas não faz alusões à mão de obra de africanos e indígenas escravizados nas minas de extração.

Diretor do Palácio Nacional da Ajuda, o historiador José Alberto Ribeiro diz que as referências à escravidão foram incluídas apenas no catálogo da exposição, que ainda não está disponível. A previsão é que a compilação, cuja impressão teria sido atrasada devido à Guerra da Ucrânia, fique pronta em julho.

"Isso é falado no catálogo, logo na abertura, quando se fala em mineração. A exposição é puramente para mostrar as joias do tesouro real e contar sua história", afirma Ribeiro.

Além das joias finalizadas, a mostra exibe uma série de pedras brutas e pepitas de ouro. O maior destaque é também proveniente do Brasil: a provável segunda maior pepita de ouro do mundo, com cerca de 22 kg.

As joias da realeza, no entanto, são o ponto mais disputado do museu, que faz um grande apanhado temporal e de estilos, mostrando como os adornos da monarquia evoluíram ao longo dos anos.

É nesta área que estão algumas das principais peças da coleção, como o grande laço de esmeraldas que pertenceu a Maria Bárbara de Bragança, que era filha do rei Dom João 5º e foi rainha da Espanha. A peça chegou a ser desmanchada e teve seus pedaços utilizados para compor outros ornamentos, mas foi restaurada à sua forma original.

"A joia entra na Casa Real após a morte da rainha, que não teve filhos, e deixou sua herança à família portuguesa", explica Ribeiro. "São consideradas uma das esmeraldas colombianas mais límpidas."

Outra peça restaurada é uma tiara em ouro, de Dona Estefânia, recebida como presente de casamento de Dom João 5º. A joia foi considerada desaparecida durante vários anos e só foi descoberta recentemente, quando especialistas da coleção identificaram que a peça estava, na verdade, desmontada.

"Era uma joia que devia ser muito desconfortável, porque, quando Dona Estefânia a usou no casamento, há relatos de que sangrou na testa", conta o diretor do palácio.

Originalmente com 4 mil diamantes, a peça é exibida totalmente "descravejada", assim como alguns outros itens. A ideia é mostrar também como a realeza fazia uma espécie de reciclagem das pedras preciosas, que tinham seus adornos trocados constantemente. Há ainda uma seleção de joias completamente pretas, idealizada para momentos de "luto profundo".

Valiosas, as joias reais não escaparam de vendas, roubos e leilões ao longo dos anos. A coleção exibe, no entanto, vários itens que o Estado português conseguiu recomprar ao longo dos anos. Nem todas as tentativas de aquisição, porém, foram bem-sucedidas. Leiloada na Christie's em maio de 2021, a tiara de diamantes e safira da rainha Maria 2ª -que era filha de Dom Pedro 1º e nasceu no Rio de Janeiro- acabou arrematada por um magnata do Oriente Médio.

Portugal chegou a fazer lances pela peça, mas o orçamento disponibilizado para a compra não foi suficiente contra o EUR 1,3 milhão (cerca de R$ 6,7 milhões) oferecido pelo colecionador. O proprietário, porém, concordou em emprestar a peça para a abertura do museu, onde ela permanecerá por um ano.

A mostra também tem um núcleo dedicado aos objetos rituais da monarquia, que representavam o poder dos reis de Portugal. Símbolo máximo do poder real, a última coroa foi encomendada no Brasil, em 1817, para a cerimônia de aclamação de Dom João 6º.

Toda em ouro, a peça tem uma particularidade: não era colocada na cabeça dos soberanos no momento em que passavam a reinar. Isso acontecia por conta de uma tradição iniciada pelo primeiro rei da dinastia de Bragança. Após reconquistar a independência de Portugal junto a Espanha, em 1640, Dom João 4º, entregou simbolicamente sua coroa a uma imagem de Nossa Senhora da Conceição e afirmou que ela seria a "verdadeira rainha de Portugal".

Daquele momento até a instauração da República, em 1910, os monarcas portugueses não tinham uma cerimônia de coroação, mas sim uma aclamação, em que o novo soberano recebia a coroa, mas não a colocava na cabeça.
A mostra impressiona ainda com a reprodução de uma enorme mesa de jantar real.

Encomendada ao ourives francês François-Thomas Germain após o grande terremoto de 1755 destruir o conjunto anterior, a imponente baixela, com vários detalhes artísticos, é referência mundial em qualidade e raridade.

A última parte da mostra chama-se "Viagens do Tesouro Real" e é dedicada à mobilidade de seu conteúdo, incluindo em momentos não tão gloriosos da história portuguesa, como o embarque da família real e da corte para o Brasil em 1807.

A maior parte do tesouro volta para Portugal em 1821, com o regresso de Dom João 6º. Os bens que ficaram a serviço da regência no Brasil, no entanto, tiveram destino bem mais disperso. Alguns dos itens voltaram a Lisboa, enquanto outros têm ainda paradeiro desconhecido.

Segundo o diretor do museu, o acervo não será emprestado a outras instituições. Há uma preocupação com a segurança das peças após um roubo ocorrido em dezembro de 2002, na Holanda.

Essa preocupação permeia todo o museu, que está instalado em uma das maiores caixas-fortes do mundo. São 40 metros de comprimento, 10 metros de largura e outros 10 metros de altura. Os acessos são feitos por portas blindadas de 5 toneladas. Todas as vitrines têm controle de temperatura e vidros à prova de bala.

Para chegar até lá, é preciso ainda passar por um detector de metais. Bolsas, mochilas e casacos passam por uma máquina de raio-x semelhante às que existem nos aeroportos. O museu está aberto todos os dias, com ingressos a EUR 10 euros (cerca de R$ 51).